MF DOOM: A SAGA DO 'SUPER VILÃO' DO HIP-HOP
MF DOOM: A SAGA DO 'SUPER VILÃO' DO HIP-HOP
Jan 08, 2021

MF DOOM: A SAGA DO 'SUPER VILÃO' DO HIP-HOP

Carlos Tico FOTO: Roger Kisby, Peter Kramer/Getty Images

No dia 31 de dezembro, último dia do fatídico e pandêmico ano de 2020, foi revelada a morte do lendário rapper e produtor MF DOOM. Mas de acordo com uma mensagem compartilhada pela esposa Jasmine nas redes sociais do artista, ele não morreu no dia em que a notícia chegou ao mundo, mas sim no dia 31 de outubro.

 

A morte de Daniel Dumile, o homem por trás da mascará de metal, aos 49 anos, ainda não teve a causa divulgada, o que torna os momentos finais do rapper um assunto tão misterioso quanto a própria jornada dele no mundo do Rap.

 

MF DOOM é uma figura singular no Hip-Hop. Conhecido tanto por sua genialidade artística quanto por sua personalidade enigmática e intrigante, o prolifero, caótico e ilusório MC londrino radicado em Nova York Daniel Dumile já era um artista antes do SBTRKT pensar em bater suas asinhas e do Daft Punk considerar usar capacetes de robôs. Por atrás da privacidade garantida pela sua simbólica máscara de metal, ele meticulosamente criou um mundo único, se tornando um fenômeno e atraindo um enorme culto de fãs. É um mundo infestado de vilões, monstros, ficção científica, metafisica e referências tiradas de histórias em quadrinhos. Uma autêntica galeria de estranhos personagens construídos através de múltiplas personalidades com uma estética inseparável e, claro, com corpos musicais meticulosamente construídos, misturados a colagens sonoras dançantes nada óbvias... usando como artifícios, por exemplo, jogos de palavras, vinhetas de anúncios televisivos, filmes e clássicos obscuros do Jazz e da Soul Music, e uma habilidade lírica e um flow inigualáveis, palatável por usar referências da cultura pop mas de uma complexidade nas rimas e métricas nunca vistas na cultura Hip-Hop. Raros são os casos em que uma persona visualmente instigante encontra paralelo com uma mente artisticamente intrigante. O MF DOOM conseguiu isso como poucos.

 

 

A seguir vamos contar um pouco da história e da trajetória e os principais destaques de cada capítulo da carreira de um dos mais geniais, complexos e influentes artistas da história do Hip-Hop.

 

K.M.D. E ZEV LOVE X

Enquanto crescia em Long Island, Daniel Dumile dividia seu tempo entre música, quadrinhos, graffiti e vídeo games. A música foi gradativamente tomando espaço graças ao seu irmão mais novo Dingilizwe também conhecido como DJ Subroc. Assim, o Rap e a produção musical tornaram-se mais do que um hobby. Em 1988 os irmãos junto aos MC’s Onyx The Birthstone Kid e Rodan montaram o grupo Kausing Much Damage, mais conhecido como K.M.D.

 

 

O álbum de estreia do K.M.D. Mr.Hood foi lançado em 1991, após o caça-talentos com passagens pela Def Jam e Tommy Boy Records - Dante Ross, descobrir o grupo ouvindo a participação deles em “The Gas Face”, do grupo novaiorquinos 3rd Bass. Na época, o K.M.D. se identificava como membro da comunidade Jund Ansar Allah (uma organização armada islamista), o LP era bastante focado na questão racial negra norte-americana, falando sobre religião, panafricanismo e racismo, mas compensando o ar pesado com samplers tirados do programa infantil Vila Sésamo. Apesar disso, foram faixas mais leves como “Peachfuzz” que garantiram algum sucesso para o grupo.

 

Entretanto, com o lançamento de álbum Black Bastards em 1993 o grupo mudou radicalmente o tom de suas músicas, indo bem longe do bom humor presente no álbum de estreia. O disco, aliás, foi rapidamente engavetado pela gravadora Elektra Records, que achou o título e a capa muito controversos. O grupo foi demitido da gravadora logo em seguida. Black Bastards foi exaustivamente pirateado e deu ao K.M.D. um status cult, teve um lançamento oficial em 2000.

 


 

Ainda em 1993, uma tragédia marcaria para sempre a vida de Daniel Dumile: seu irmão e parceiro de grupo DJ Subroc tentou atravessar a pé a Long Island Expressway e foi atingido por um automóvel, vindo a falecer ali mesmo, o que marcou o fim do grupo.

 

Foi então que Dumile e seu alter ego Zev Love X sumiram completamente do radar musical. Muitos dizem que ele viveu durante anos nas ruas de Nova York, mas o artista nunca confirmou.

 

A PRIMEIRA APARIÇÃO DO METAL FACE E O LANÇAMENTO DE 'OPERATION DOOMSDAY'

Dumile reapareceu no final de 1997 em noites de open mic em Nova York (em diversos clubes undeground como o Nuyorican Poets Café) utilizando diversos disfarces. Porém, foi em 1999 e graças a sua icônica máscara de metal que ele se tornou um símbolo, com o lançamento do seu primeiro álbum completo Operation: Doomsday, um dos mais celebrados e originais registros do complexo panteão de obras que definem o Hip-Hop underground, sob o codinome MF DOOM (Metal Face DOOM), pela gravadora independente Fondle ‘Em Records de Bobbito Garcia. O afrocentrismo melódico e otimista do Zev Love X ficou para trás. A inspiração agora vem do vilão Doctor Doom (Dr. Destino), tirado das páginas do HQ “Quarteto Fantástico” da Marvel, e de uma incessante busca pelo anonimato, que dizem ter sido desencadeada por um desgosto com a indústria musical adquirida após o K.M.D. Ele assumiu definitivamente a persona e se autodenominou como o super vilão (para muitos o super-herói) do Hip-Hop e nunca mais se apresentou ou foi visto sem a sua icônica e inseparável máscara de metal. E o comportamento dele sempre corroborou com isso: ele frequentemente marcava shows, vendia ingressos, e mandava um dublê para se apresentar em seu lugar (que ele mesmo chamava de Doombots). O público obviamente se irritava e geralmente percebia depois de uma música com um playback horrível, ou mesmo a voz do dublê não ser nem um pouco parecida e ele não saber as letras (risos).

 

Dumile precisou se reinventar, não apenas para se abstrair das armadilhas que sempre atraem e traem homens negros na América contemporânea, mas também para fugir as próprias normas de identidade erguidas pela cultura em que se movia. Podemos argumentar e sobretudo afirmar que, ao se apropriar da máscara de Doctor Doom, Dumile "se posiciona como inimigo, não só da indústria da música, mas também das construções dominantes de identidade que o relegam ao homem negro a cidadania de segunda classe".

 

 

VIKTOR VAUGHN, KING GEEDORAH E OS CZARES DA MONSTA ISLAND

Atingindo um status relativamente cult com o Operation: Doomsday, MF DOOM manteve seus fãs ao trabalhar com diversos outros pseudônimos. Em 2003 ele colaborou com vários produtores, incluído o RJD2 para lançar Vaudeville Villain, assinado pelo personagem Viktor Vaughn. O mesmo ano também foi marcado pela aparição do King Geedorah, um alter ego que ele usou para produzir o LP Escape From Monsta Island! do grupo Monsta Island Czars, assim como o LP do mesmo grupo denominado Take Me to Your Leader. De acordo com as palavras de DOOM no encarte do LP, o último foi um álbum conceitual: “Geedorah é um monstro espacial. Ele não é da terra. Eu fiz diferente de propósito. Foi uma mistura de letras e instrumentais da hora. Para mim é muito mais legal do que qualquer outra porcaria de agora…O álbum todo é a perspectiva que o alien Geedorah tem sobre os humanos...”

 

 

MADVILLAINY E O ENCONTRO DE MENTES

O encontro do também genial produtor Madlib e MF DOOM deu origem ao duo Madvillain para a criação de Madvillainy, resultou em um dos álbuns mais bem sucedidos da história do Hip-Hop. Lançado pelo selo angelino Stones Throw Records em 2004, produziram faixas mais curtas que juntas contabilizavam 45 minutos e abusaram dos samples e colagens melódicas de Jazz, tudo muito bem desenvolvido. O álbum foi aguardado ansiosamente pelos fãs e acabou atraindo um público muito mais amplo do Rap, sendo também muito elogiado pela esmagadora maioria dos críticos, até mesmo do mainstream musical. Madvillainy teve um papel fundamental para a consolidação da primeira aparição de verdade de MF DOOM. O artista da máscara de metal raramente concedeu entrevistas e nas poucas que cedeu, sempre elogiou Madlib como umas de suas maiores referências e inspirações.

 

 

MM…FOOD E O RETORNO DO METAL FACE

Desde o lançamento de Operation Doomsday, o personagem MF DOOM fez um triunfante retorno com o álbum MM…Food? em 2004, lançado pelo selo Rhymesayers. A aventura culinária de MF DOOM não foi tão bem recebida pela crítica como o Madvillainy, porém os fãs elogiaram o álbum pela riqueza das letras e por ter um DOOM mais fanfarrão e cômico, além de saudarem o retorno dele no comando da produção, como nas ótimas faixas “Hoe Cakes” e “Rapp Snitch Knishes”.

 


 

DANGERDOOM E O FLERTE COM O MAINSTREAM

Em 2005 MF DOOM trabalhou em uma collab com o talentoso produtor Danger Mouse, sob o pseudônimo Dangerdoom resultando no LP The Mouse and the Mask, lançado pelo selo Epitaph e licenciado para a gravadora inglesa Lex Records. O projeto teve um apelo comercial e cultura geek, junto com uma variedade absurda de artistas colaboradores. Entre os mais inusitados e estranhos, um com o personagem animado do Adult Swim do Cartoon Network chamado Aqua Teen Hunger Force, que soltou um refrão sujo e um tanto babaca para a música “Sofa King”, assim como nomes mais conhecidos como Cee-Lo na faixa “Benzie Box” e Talib Kweli embelezando a faixa “Old School”. Entretanto foi a esperada colaboração de DOOM com o rapper e membro fundador do Wu-Tang Clan Ghostface Killah, na faixa “The Mask” que chamou mais a atenção.

 

 

ÚLTIMOS CAPITULOS, ALÉM E LEGADO...

Em 2009, MF DOOM seguiu de mudança para o Reino Unido, após sua reentrada nos EUA ser recusada depois da sua primeira turnê internacional europeia, pois embora tenha vivido no país a maior parte de sua vida, ele nunca se naturalizou norte-americano, ficando longe de sua família por quase dois anos até conseguir a sua cidadania em 2012.

 

Neste mesmo período, aproveitando o sucesso comercial de The Mouse and the Mask, o selo britânico Lex Records lançou Born Like This sob o nome abreviado de "DOOM". Embora um álbum muito mais denso do que Madvillain e Dangerdoom, cheio de referências a Charles Bukowski e temas de desilusão e anti-establishment, o álbum se tornou o seu primeiro trabalho solo a emplacar nas paradas, estreando no 52º lugar nos EUA. Embora ele seja uma de suas aventuras mais obscuras, Born Like This estava cheio de primeiras vezes para DOOM; incluindo a primeira vez que ele tocou fora dos EUA, parcerias musicais com Thom Yorke do Radiohead e Gorillaz e um outro EP produzido por J Dilla chamado Gazzillion Ear. Born Like This seria o seu último trabalho solo assinado como MF DOOM, que a seguir se multiplicou em vários projetos colaborativos que atestaram e definiram bem a sua grandeza, caneta e sua lírica, seu faro diferenciado para produção de beats e o seu inegável estatuto de “MC favorito do nosso ou do seu MC favorito”: depois do aclamado projeto Madvillain criado junto a  Madlib, DOOM através do alter ego Metal Fingers e de sua gravadora Metal Face Records dividiu créditos em álbuns com o MC e produtor novaiorquino MF Grimm (o MF EP de 2000, e a série instrumental de samples e batidas Special Herbs volumes 0 a 9 + Spices Volume One, e a série de remixes de canções famosas do Hip-Hop de outros rappers e MC’s - Special Blends 1 & 2, todos de 2004), Danger Mouse (o álbum The Mouse and the Mask, de 2005, assinado como Danger Doom) já citado anteriormente neste artigo, Jneiro Jarel (Key to The Kuffs, de 2012, como JJ DOOM), Masta Ace (MA Doom: Son of Yvonne também de 2012), Bishop Nehru (o álbum NehruvianDoom, de 2014), e finalmente, Czarface (o trio formado por 7L, Esoteric e Inspectah Deck com quem assinou Czarface Meets Metal Face, em 2018). Ainda em 2018, DOOM e o DJ e produtor do Cypress Hill DJ Muggs, dividiram os créditos do EP “Assassination Day”. Sua última colaboração em vida foi o som “The Chocolate Conquistadors” junto a banda canadense BadBadNotGood, música que faz parte da última atualização da série de games Grand Theft Auto Online - GTA, lançado na segunda quinzena de dezembro passado. Ao todo, em vida MF DOOM através de seus diversos aliases lançou seis álbuns solos, e outros seis colaborativos.

 

 

Podemos adicionar a esta vasta obra uma extensa lista de pontuais colaborações que levaram MF DOOM a trabalhar com nomes tão distintos e importantes como Prefuse 73, Aesop Rock, The Herbaliser, Non Phixion, Prince Paul, De La Soul, Prince, Kurious Jorge, Count Bass D, Zero 7, Joey Bada$$, Vast Aire, Daedelus, Wu-Tang Clan, Quasimoto, Dabrye, Shape of Broad Minds, DJ Babu, Masta Killa, Hell Razah, Jonny Greenwood, Oh No, Flying Lotus, Cannibal Ox, Jake One, Damu The Fudgemunk, The Avalanches, Your Old Droog, Rejjie Snow, Westside Gunn, Tuxedo e entre outros tantos nomes dessa infinita cultura.

 

A força vital de MF DOOM foi uma metáfora para todos os homens negros neste mundo... pegou toda a m*rda do mundo e criou uma bela arte sem amarras com ela. A arte de MF DOOM representa o espírito mais puro, livre e profundo da cultura Hip-Hop, ele sempre foi o mesmo desde Operation Doomsday. DOOM tornou-se imediatamente um molde para toda uma geração do início do novo milênio (anos 2000) que procurava desenhar no submundo da cultura uma alternativa ao ‘’rap game’’ do mainstream que sempre dominou o topo das paradas de sucesso, ajudando a impulsionar a cena do Hip-Hop underground no final dos anos 90, estabelecendo o subgênero como um ramo viável e produtivo da música Rap.

 

 

Tudo isso só deixa mais claro que Daniel Dumile era uma presença monolítica, que não se moveu um milímetro sequer ao encontro seja de quem for, que ergueu uma dimensão paralela em que habita solitariamente, alheio a qualquer movimentação no mundo real. Foi a máscara que o protegeu, que transformou e que o transportou para essa dimensão. A máscara, aliás, foi o artista.

 

Ao comunicar a morte de DOOM no último dia 31 de dezembro, dois meses após o seu falecimento, a família respeitou certamente a sua personalidade reservada. A causa da morte não foi divulgada, mais um fato que sublinha a privacidade de um homem cuja vida foi emoldurada e reinventada pela tragédia: não só perdeu o seu irmão no início da carreira como teve ainda que lidar com a morte prematura de seu filho mais novo King Malachi Ezekiel de 14 anos em dezembro de 2017. Talvez, afinal de contas, a máscara servisse para esconder a dor. O mundo não poderá mais contar com o anti-herói da máscara de metal que insuflou fantasia, abstração e real arte neste plano.

 

Certamente, nos próximos anos, novos versos, beats, obras e projetos póstumos e colaborações de MF DOOM vão surgir e se materializar. Mas mesmo que esses desejos coletivos não se tornem realidade, a verdade é que o legado do super vilão recluso e reservado da icônica máscara de metal já tem história e fôlego suficiente para a eternidade. DOOM foi ator principal no “filme” que ele mesmo produziu, realizou e distribuiu, e referência pra todo artista que produz arte independente completamente livre. Seu amigo de longa data das ruas novaiorquinas Busta Rhymes, escreveu sobre isso em seu Instagram ao lamentar a morte do amigo Daniel Dumile, reforçando o que diferenciava MF DOOM de todos os outros MC´s, foi a sua plena liberdade de ser quem realmente é, independentemente de qualquer rótulo, e que todos ainda tinham muito para aprender com MF DOOM!

 

 

A passagem de MF DOOM pegou todos do mundo do Hip-Hop e os fãs de surpresa nessa virada de ano... diversos artistas importantes da cultura como o premiado ator Mahershala Ali, o vocalista do Radiohead Thom Yorke, Danny BrownDenzel CurryDJ PremierEl-PFlying Lotus, Pete RockGhostface Killah9th Wonder, JPEGMafiaNoname, Questlove e Tyler, the Creator, lamentaram a morte do artista em suas redes sociais, incluindo o líder do legendário A Tribe Called Quest, Q-Tip, que também lamentou a morte do super vilão em seu Twitter: "Um descanse em paz para outro gigante. O MC favorito do seu MC favorito. MF DOOM!!"

 

REST IN BEATS MF DOOM! SUPPA!!!

 


Carlos Tico: Historiador, Apresentador na Dublab Brasil, Discotecário e Pesquisador Musical.

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